Mais uma da turma do Pazuello: Brasil fica sem pesquisa sobre doenças crônicas
Vigitel, levantamento feito anualmente a respeito das enfermidades que mais matam os brasileiros, não tem previsão de ser realizada. Ministério da Saúde não divulga sequer os dados do ano passado
Essa matéria foi publicada originalmente pelo site O Joio e o Trigo e escrita por Luísa Souza. Para acessar o site e conferir essa e outras reportagens sobre Nutrição e Alimentação sem conflito de interesse, clique aqui.
O Brasil não ficará “só” sem o Censo Demográfico neste ano. Também a pesquisa anual sobre doenças crônicas será uma ausência eloquente em meio ao apagão de dados que vive o país.
O levantamento da Vigitel (Vigilância de Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico) é conduzido pelo Ministério da Saúde desde 2006 e era feito (até agora) todos os anos. A pesquisa integra o sistema de vigilância de fatores de risco para doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), ao lado de dois outros inquéritos. Mas a chegada de Eduardo Pazuello e companhia à Esplanada afetou não apenas o combate à pandemia, como uma série de atividades na área de saúde.
Realizada através de ligações para telefones residenciais das capitais de todos os estados, a pesquisa é uma importante base de dados para acompanhar a saúde da população, e desenvolver e acompanhar o resultado de políticas públicas na área.
Entre as enfermidades monitoradas estão diabetes, câncer, doenças respiratórias crônicas e doenças cardiovasculares, as principais causas de morte dos brasileiros. Os fatores de risco incluem tabagismo, alimentação, inatividade física e consumo de bebidas alcóolicas.
A Vigitel também produz investigações temporárias sobre questões mais pontuais, tendo incluído perguntas sobre a dengue e sobre a proteção contra raios-violeta em determinados períodos.
“Se você vê, por exemplo, um aumento no número de fumantes, você aumenta as políticas públicas para combater o tabagismo. Se você começa a ver um aumento no consumo de alimentos ultraprocessados, você sabe que é para esse lado que tem que direcionar”, explica Renata Levy, pesquisadora científica do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (Nupens).
Mas o monitoramento está parado desde maio de 2020, e não será concluído este ano. A razão é a não renovação do contrato do qual a pesquisa dependia, afirma Rafael Claro, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) que tem prestado auxílio técnico ao estudo. “A pesquisa tem sido realizada em uma joint-venture entre três partes: um grupo de técnicos do Ministério de Saúde, uma empresa contratada para a coleta de dados e um grupo de universitários que fornecem apoio técnico”, explica.
Ele detalha que os contratos com a empresa são anuais e renováveis por um período médio de até cinco anos, e que geralmente por volta de outubro há uma reunião para definir os rumos do inquérito no ano seguinte.
Quando essa reunião ocorreu em 2019, então, já se sabia que o contrato iria expirar em maio do ano seguinte. Foram propostos dois planos. O primeiro era seguir com a operação normal e começar com a coleta nas capitais o quanto antes, e o segundo era fazer uma nova licitação para expandir o sistema da Vigitel.
“Para isso, a gente ia começar a fazer uma operação ligando também para celulares e para telefones não apenas das capitais, tendo assim um sistema mais representativo dos estados”, conta Claro.
Foi elaborado um termo de referência, mas, segundo conta Claro, houve “dificuldades” no ministério e o preço estabelecido para o contrato foi “baixíssimo”, o que fez com que não fosse aceito.
Ausência, silêncio e ocultação de dados
Sem essa questão resolvida, chegou 2020 e a coleta começou em janeiro. E em março veio a pandemia. Nesse momento, a UFMG propôs para a empresa um módulo para que a Vigitel coletasse dados também sobre Covid-19. Mas a proposta aprovada foi um inquérito paralelo com foco específico em coronavírus.
A investigação estava composta de quatro blocos. O primeiro, de perguntas sobre medidas de proteção, se o entrevistado lavava as mãos, se tinha higiene respiratória, se estava saindo de casa.
O segundo bloco focava em uma dessas medidas de proteção e procurava conseguir informações mais detalhadas sobre como, quando e com que frequência ela estava sendo adotada. A medida em foco poderia mudar de acordo com as necessidades e prioridades do momento.
Em seguida vinha um bloco direcionado à comunicação. Ali se perguntava onde as pessoas estavam buscando informações sobre a Covid e quais eram as principais fontes de informações (rádio, TV, internet etc). Por fim, foi feito um bloco com questões sobre doenças crônicas e fatores de vulnerabilidade como acesso a serviços de saúde e posse de planos de saúde.
O Vigitel continuou com a pesquisa habitual e o inquérito sobre a pandemia até 5 de maio de 2020, quando acabou o contrato e a coleta de dados foi interrompida.
E assim, “o tempo foi passando, a pandemia piorando e isso foi deixado para trás”, diz Claro. O ano chegou ao fim, nada foi acordado para 2021 e até o momento não há sinais de que isso vá acontecer.
Mas, além dessa ausência de perspectivas para que a Vigitel seja retomada, o Ministério da Saúde ainda não liberou os dados coletados no ano passado. Em um processo normal, diz Claro, a coleta termina em 15 de dezembro e em janeiro o relatório está pronto.
“O ministério optou por não publicá-los”, afirma Renata Levy. “Isso eu acho mais grave ainda, porque não é nem uma questão orçamentária. Já foi feita, ela já está pronta.”
A pesquisadora do Nupens também afirma que algumas instituições estão requisitando os dados através da Lei de Acesso à Informação para torná-los públicos, mas que até agora eles não foram obtidos.
Embora a coleta tenha sido incompleta e os dados só se refiram ao período até maio, eles são a única fonte de dados federal e oficial sobre doenças crônicas e fatores de risco.
Covid-19 e doenças crônicas
A pandemia torna essas informações ainda mais urgentes. Diversas doenças crônicas aumentam o impacto da Covid e o risco de morte por pessoas infectadas, então é essencial ter acesso a dados sobre doenças crônicas para avaliar o impacto da crise sanitária.
Uma pesquisa da Organização Panamericana de Saúde (Opas) em setembro de 2020 apontou que 42% dos brasileiros entrevistados aumentaram o consumo de álcool durante a pandemia. Um mês antes, um estudo da Fiocruz informou que 34% dos fumantes entrevistados declararam ter aumentado seu consumo de cigarros. Outros levantamentos também têm apontado crescimento no consumo de alimentos ultraprocessados durante a pandemia.
Sem o monitoramento nacional, pondera Levy, é muito difícil avaliar a situação e ajustar políticas públicas na área de saúde.
O contexto é ainda mais preocupante com a ausência do Censo do IBGE, a pesquisa nacional mais importante do país. A ausência de estatísticas no momento mais crítico da história recente do país “é uma tragédia, vai prejudicar muito o Brasil”, define Claro.
Em abril, o país foi pego de surpresa com a notícia de que o Censo, já adiado no ano passado, não seria feito. O orçamento sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro apresentou cortes nos recursos para o estudo, e a verba para isso, que já foi de R$ 2 bilhões, terminou reduzida a R$ 50 milhões.
Para Claro e Levy, a ausência do levantamento nacional – a principal fonte de referência para o conhecimento das condições de vida da população – é um fator de desequilíbrio em cascata: “O IBGE faz a calibração de todos os inquéritos”, diz Claro. “Ao não ter Censo, todos os inquéritos que continuam vão vir com algum grau de cansaço.”
Essa ausência de dados afeta não apenas a área de saúde. Sem o levantamento nacional, os inquéritos irão trabalhar com projeções populacionais, explicam os pesquisadores. Mas, depois de mais de uma década sem o Censo, é questionável a precisão dessas projeções.
Para Levy, a ausência de dados é uma nova realidade com a qual os pesquisadores não estão acostumados. “A gente tinha facilidade de acesso a dados nacionais, seja produzidos pelo IBGE, seja pelo próprio ministério. Qualquer pesquisador de qualquer universidade conseguia acessar os dados e trabalhar com eles.”
De acordo com Claro, há tentativas de voltar a dar andamento ao Vigitel. Se a licitação for concluída até agosto, ele conta, a coleta poderia ser reiniciada, mas dessa vez com início no final do ano, ao invés do começo.
Contatado pelo Joio, o Ministério da Saúde confirmou que um novo processo de licitação está em andamento e afirmou que “em breve” os dados da pesquisa de 2020 estarão disponíveis. Por enquanto, permanecemos no escuro.