Gordofobia Médica: uma barreira entre o usuário dos serviços de saúde
Segunda-feira, 8 de junho de 2020. No Programa Mulheres da Rede Gazeta, a pauta é violência doméstica. A advogada Sandra Daniotti responde dúvidas de telespectadores. O assunto está em alta. Isso porque o isolamento durante a pandemia de Coronavírus deixa as mulheres ainda mais expostas aos seus agressores. Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, as denúncias recebidas através do canal 180 subiram 40% no mês de abril, numa alta progressiva desde fevereiro em relação a 2019.
A médica Maithê Pimentel, em transmissão ao vivo, surge com uma pergunta. “Sandrinha, se eu te pedir uma coisa, você me ajuda? Eu quero te ajudar a emagrecer!”. Visualmente constrangida, a advogada justifica seu peso e recebe os conselhos não solicitados e inoportunos da profissional de saúde. Mais tarde, a apresentadora Regina Volpato pediu desculpas pelo ocorrido em vídeo no Instagram.
O momento, absolutamente inadequado, demonstra como são comuns os comentários a respeito da estética do corpo feminino. O assunto surge até mesmo para interromper um tema jurídico socialmente relevante. A “dica amiga”, ou a humilhação em rede nacional, vem com um verniz de preocupação de saúde. Esse é um episódio de gordofobia médica.
A gordofobia médica acontece quando um profissional da saúde trata um paciente considerado acima do peso com discriminação e preconceito. “Obesidade é doença realmente e é um fato de risco de várias doenças. Mas no momento em que você coloca um estigma, como se a culpa de estar obeso, de estar acima do peso fosse do paciente, você se nega a enxergar aquela pessoa como ela é, com as características particulares e únicas que ela tem, como se todos os obesos fossem iguais”, pontua Fernanda Gomes de Melo, médica endocrinologista e nutróloga em entrevista ao canal EuVejo, da jornalista Daiana Garbin.
Segundo a profissional, existem diversos fatores que podem influenciar o peso e mesmo o emagrecimento planejado varia de acordo com o indivíduo. Além disso, as consequências negativas do sedentarismo e práticas alimentares inadequadas também podem afetar igualmente pessoas magras, mesmo sem alterações visuais.
O documento “Joint international consensus statement for ending stigma of obesity”, publicado em maio de 2020 na revista científica Nature, aborda o estigma perverso e persistente enfrentado pelas pessoas com obesidade. Essas pessoas, ainda que não existam evidências para tal, são lidas socialmente como preguiçosas, glutões, sem força de vontade e autodisciplina. Isso acontece em diversos espaços, tendo consequências físicas e psicológicas. O pronunciamento foi assinado por diversas organizações, sociedades científicas e de pacientes, revistas médicas e instituições acadêmicas e hospitalares.
Entre os efeitos resultantes do estigma no peso, podemos citar o isolamento de adolescentes com sobrepeso e obesidade, danos à saúde mental, altos níveis de ansiedade, baixa autoestima, estresse percebido e abuso de substâncias.
Contrariando o senso comum, a humilhação infringida por familiares, amigos e mesmo desconhecidos não é eficaz como incentivo. Pelo contrário. O estigma está relacionado a índices mais baixos de atividade física, consumo de dietas não saudáveis e aumento do comportamento sedentário, além de maior ganho de peso ao longo do tempo.
Indivíduos com sobrepeso e obesidade que foram vitimados pela gordofobia apresentam níveis mais elevados de proteína c-reativa circulante, cortisol, risco cardiometabólico de longo tempo e aumento na mortalidade em comparação a indivíduos que não a vivenciam.
Especificamente na área médica, evidências sugerem que profissionais da saúde investem menos tempo em consultas e fornecem menos educação em saúde para pacientes com obesidade comparado a pacientes magros. Pacientes que passam por preconceitos com relação ao peso no sistema de saúde obtém poucos resultados em tratamento e tem mais probabilidade de evitar procurar ajuda no futuro.
Ainda segundo o consenso, esse preconceito infiltra-se em políticas públicas, na comunicação midiática, que reforça imagens distorcidas acerca de indivíduos acima do peso, e acarreta em financiamento relativamente baixo para pesquisas sobre o tema. Isso tudo é ainda mais grave quando o ganho de peso é atribuído a causas individuais, como se fosse mero resultado de escolhas pessoais e fatores internos controláveis.
Quando é considerada a complexidade de fatores que causam a obesidade, incluindo fatores genéticos, biológicos e comportamentais, há menos culpa e estigma. O que esses dados deixam claro é a necessidade de abandonar antigos discursos e apoiar-se em evidências científicas, se quisermos mudar o cenário da epidemiologia nutricional que aponta continuamente para o aumento da obesidade.
A explicação fornecida pelo documento, de leitura obrigatória a profissionais que pretendem tratar os pacientes obesos com respeito, revela que preencher a lacuna entre as evidências e a narrativa socialmente construída sobre a obesidade, apoiada em presunções e conceitos errôneos, pode reduzir o preconceito e aliviar suas numerosas implicações.
Ana, jornalista, sabe bem o que é gordofobia médica. Ela desenvolveu Diabetes mellitus tipo 2, uma doença comum na família. Depois de alguns meses do início do tratamento, o médico sugeriu fazer a cirurgia bariátrica. Mesmo após a recusa da paciente, o profissional continuou insistindo nas três consultas seguintes, chegando até a solicitar os exames necessários. “É uma escolha sua, mas se você fosse minha irmã, te dava um tapa na orelha e diria que você vai fazer sim”, argumentou o médico.
Na época, Ana tinha 90 quilos e obesidade tipo 1. Hoje, com o tratamento correto, tem 82 kg, na faixa de sobrepeso, e diabetes controlada. “Eu tenho mãe e tia que fizeram a cirurgia e sei o quanto os efeitos colaterais, como a Síndrome de Dumping, as afeta. Além disso, eram obesas mórbidas”.
A experiência não definiu sua percepção sobre profissionais de saúde. “Existe muita gente boa, que respeita o seu corpo e também tem outros que ficam presos em dogmas retrógrados e reproduzem isso aos seus pacientes”, aponta. Para ela, o discurso ainda é repassado pelos próprios pacientes, que se apoiam na autoridade médica para fazer comentário gordofóbicos, disfarçados de preocupação com a saúde alheia.
“Cuidar da saúde é ser mais humano em relação à doença, ao corpo da pessoa, ao momento”, pondera. Ana acredita que soluções simples, como própria compreensão do termo gordofobia, poderiam aumentar a qualidade do atendimento, inclusive no Sistema Único de Saúde.
“Já fiz milhões de dietas milagrosas e restritivas, já tomei muito remédio, malhei como se não houvesse amanhã. Mas conhecimento dá poder e, ao longo do tempo, fui entendendo meu corpo, entendendo que a sociedade e seu padrão inatingível sempre iriam cobrar um corpo que eu não poderia ter, então passei a me amar mais e ligar menos pras opiniões”. Foi assim que passou a entender o seu corpo e cuidar dele, não com um objetivo de magreza, mas sim bem-estar.
Às vezes, o preconceito com o peso pode inclusive atrapalhar a investigação clínica assertiva. Foi o que aconteceu com Sarah. Há três anos, ela sofria de desregulação hormonal e foi aconselhada pela ginecologista a procurar um endocrinologista. Depois de toda a dificuldade de encontrar um profissional que aceitasse pacientes novos, foi à consulta e informou a sua queixa.
“Eu disse a ela que queria fazer exames e precisava investigar a tireoide. Ela me atravessou dizendo que pessoas acima do peso têm problemas hormonais mesmo, porque são gordas e a tireoide é a desculpa perfeita. Perdi o horário de almoço e a vontade de descobrir além”, lembra. Só alguns meses depois, conheceu outra profissional com a mesma especialização. O tratamento adequado? Reposição do hormônio T4.
S. H., aos quatorze anos, foi a uma nutricionista pela primeira vez aos 14 anos, acompanhado da mãe. Depois do recordatório alimentar, a profissional queria encaminhar H., que tinha sobrepeso, para uma consulta com médico e psicólogo, visando a cirurgia bariátrica. A prescrição da dieta veio acompanhada de uma série de medicamentos fitoterápicos e suplementos de minerais, mesmo sem a necessidade comprovada por exames bioquímicos.
“Foi uma sensação de impotência. Fiquei triste porque, pra mim, nunca foi fácil. Parecia que não havia solução. Foi difícil seguir a dieta porque tinha vários alimentos que eu não gostava e que eram impostos”.
Apesar de já sentir muita vergonha do corpo, que o impedia mesmo de tomar banho de piscina, ele ouviu da profissional que tinha que tomar atitude e seu peso era “feio para sua idade”. Ela também o advertiu que, ao chegar à vida adulta, teria um peso muito maior.
“Um bom relacionamento com o corpo faz muita diferença. Tive episódios de compulsão, pegava o dinheiro escondido para comprar comida. Bate a tristeza quando você vê que é o menino mais gordo da sala. Ou de qualquer lugar que você vai”, destaca.
Se a profissional tivesse sido mais empática, envolvendo-o no processo, o resultado seria diferente. Hoje, estudante de Nutrição, ele pensa em fazer diferente. “Seria mais efetivo se o profissional tivesse uma abordagem que considerasse uma verdadeira Educação Alimentar e Nutricional”.
A ciência é uma ferramenta útil contra a gordofobia. Mas a maior arma contra a preconceito é, certamente, a escuta empática e um aconselhamento que considere todos os aspectos daquele indivíduo único. Assim como os pacientes que gentilmente cederam seu tempo para essa reportagem, toda pessoa tem sua história. E um tratamento realmente benéfico começa com a vontade de enxergar além das aparências.
Joint international consensus statement for ending stigma of obesity
Esse consenso é uma declaração conjunta de várias entidades científicas. Seu objetivo é acabar com o estigma da obesidade. O material dá informações sobre os impactos dos estereótipos e preconceitos na saúde e bem-estar dos indivíduos com excesso de peso, além de trazer definições de conceitos relevantes para o tema. Indica também caminhos e reflexões pertinentes aos usuários dos sistemas de saúde e, principalmente, uma nova perspectiva para os profissionais. Clique aqui para acessar.